Memórias - I

Por Júlio Amstalden

Este texto é um breve depoimento a respeito do que é trabalhar com a música no contexto litúrgico católico. Por essa razão, prefiro escrever na primeira pessoa.

Comecei a tocar em missas ainda muito jovem, com apenas 13 anos de idade. Tocava os já esquecidos e hoje quase desconhecidos harmônios, que nos idos de 1980 ainda existiam em quantidade pelas igrejas brasileiras. Eu, então, acompanhava um pequeno coro de crianças numa capela anexa a um orfanato. Repertório em uníssono, música pastoral, típica daquele momento.

Mais tarde, por volta de meus 18 anos e ainda na mesma comunidade, formei voluntariamente um pequeno coro de adultos, composto majoritariamente por idosos. Continuávamos a fazer canto pastoral, mas eu insistia em acrescentar o repertório que eu encontrava em antigos livros abandonados em velhos armários empoeirados, geralmente a duas vozes e, no máximo, a três. O grupo se esforçava muito e nem sempre conseguia atingir algum resultado.

Aos 28 anos fui convidado a assumir um coro litúrgico católico que agonizava, cuja fundação remontava ao fim do século XIX. Eu disporia ainda de um órgão de tubos e tudo seria trabalho voluntário, "pago por Deus". O órgão estava mudo havia uns três anos e naquele 1995 estava sendo recuperado. Eram muitos os desafios: trazer novos coralistas (havia pouquíssimos quando iniciamos), pesquisar repertórios, ensinar o mínimo de técnica vocal, melhorar a auto-estima dos cantores e, acima de tudo, abrir espaço na comunidade, que achava que o coro tinha que ser extinto. O rico acervo do coro estava desorganizado e mal cuidado, cheio de pó, traças e brocas.

Atirei-me com muita energia e idealismo à tarefa e o coro realmente renasceu. Sua nova sonoridade causou espanto na comunidade e gradativamente começamos a receber novos cantores, entre eles vários jovens, impressionados com a novidade, de modo que o grupo chegou a ter por volta de 40 coralistas. A maneira como o órgão era tocado também constituía uma novidade para as pessoas, que desconheciam o uso criterioso de registros, a técnica apropriada e a sonoridade da pedaleira. Mesmo assim, grupos contrários à existência do coro faziam esforços proporcionais para sua desativação. Tais grupos arvoravam-se no argumento de que a simples existência do coro era antagônica aos princípios do Concílio Vaticano II, bem como de Medellín e Puebla. A agressividade dos contrários somada à omissão dos clérigos tornou a situação insuportável, de modo que, pelo bem de minha saúde emocional, acabei por deixar o trabalho.

Há também que se lembrar da atuação da extinta Associação Paulista de Organistas (APO), com a qual travei contato em 1982, cinco anos depois de ter sido fundada pelas organistas Dorotéa Kerr e Elisa Freixo, que mais tarde viriam a ser minhas professoras de órgão. A APO formou-se devido à percepção de que tocar órgão era uma atividade quase desconhecida e já se tornava esquecida, pois havia muitos instrumentos abandonados e estragados não só na cidade de São Paulo, mas também no interior e em outros estados. Visava então reunir os poucos organistas remanescentes de uma outra época, formar a nova geração e divulgar o instrumento através de concertos. Esses, por sinal, tinham ricos programas explicativos, com textos bem cuidados e muito informativos. Era, então, um trabalho de abrir caminho através de uma floresta. 

Muitas observações e estranhamentos foram colhidos ao longo do percurso trilhado até aí, de modo que fui sendo levado a elaborar o que veio a ser minha pesquisa de Mestrado pela UNESP: o que teria acontecido no Brasil, após o Vaticano II, que levou à extinção dos coros litúrgicos, ao esquecimento do órgão e à decadência da música católica? A dissertação foi defendida em 2001 e indicada para publicação, o que aguardo para um futuro próximo. (continua)


Harmônio fabricado por E. Bohn, idêntico ao que tocava aos 13 anos de idade na Capela do Lar Franciscano de Menores, Piracicaba - SP:

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