Memórias - II

Por Júlio Amstalden

(Continuação do texto postado em 20/01/2015)

A pesquisa concluiu que, sob as influências da nascente cultura televisiva, da indústria cultural, da falta de compositores escolarizados, de uma parca educação musical da sociedade e de correntes teológicas muito díspares entre si, a música católica acabou por assumir marcantes características da música comercial, tal como aquela veiculada pelos meios de comunicação em massa. Tratava-se, então, de uma grande contradição, uma vez que a intenção original era se criar uma linguagem identificada com a música brasileira autenticamente "de raiz", sem no entanto deixar de dialogar com a antiquíssima tradição da música católica. Assim, era de se esperar que coros e órgãos fossem mesmo deixados de lado.

Nos dias de hoje observamos, pelo menos nas regiões sul e sudeste do país, um movimento crescente de formação de coros mistos em comunidades católicas, bem como de construção e restauro de órgãos. Esses dois fatos seriam totalmente impensáveis há pouco tempo atrás e ainda precisam ser mais analisados e compreendidos. Duas hipóteses podem ser levantadas como explicativas: a) a volta à tradição seria uma reação aos exageros cometidos; b) tais movimentos seriam um reflexo do papado de orientação mais conservadora de Bento XVI. No ano de 1999, no entanto, a CNBB já havia publicado um estudo sobre o canto litúrgico no Brasil, apontando para vários mal-estares e problematizando a questão da falta de músicos devidamente habilitados a exercer seu papel nas assembléias litúrgicas. Apontava, ainda, para a necessidade de se remunerar músicos com formação para atuarem nas igrejas (Estudos da CNBB, 79).

De qualquer forma, sempre defendi que o renascimento dos coros e a recuperação dos órgãos têm o seu valor estabelecido pela dimensão profundamente educadora da prática conjunta da música, bem como pelas suas propriedades mais intrínsecas e peculiares. K. Swanwick (1999), educador musical inglês, afirma que música é linguagem porque apropria-se de um processo metafórico, de modo a poder revelar "a vida do espírito". Assim, a experiência de se cantar conjuntamente num contexto associado ao rito traria por um lado o acesso a conteúdos das mais diversas naturezas (musicais, linguísticos, históricos, subjetivos etc.) e, por outro, a possibilidade de se vivenciar uma experiência que extrapola a ordem cotidiana dos fatos, ou seja, a transcendência.

O movimento coral na Igreja Católica no Brasil ainda é frágil e incipiente, mas caminha. Tenho observado que há muitas pessoas que procuram coros litúrgicos com desejos de palco, de serem vistas e admiradas, sem entender a dimensão ritual que está implícita na natureza do grupo. Infelizmente, há também regentes e organistas dos grupos existentes que pouco trocam com outros que desempenham as mesmas funções. São pouco colaborativos e passam a impressão de auto-suficiência, fechados em seus próprios mundos e incapazes de enxergar além de seus próprios limites. Assim, isolam-se e não comunicam-se com os colegas, não imaginando que vários dos problemas encontrados em seus grupos são experimentados também por seus congêneres. Preferem, ao invés disso, muitas vezes não reconhecer que os problemas existem. Não raramente, a postura dos dirigentes é assumida também pelos coralistas.

Trata-se de uma atitude lamentável, pois foi esse modo de agir que, no passado, criou uma aura de antipatia e arrogância em torno dos coros litúrgicos, colaborando assim para que fossem extintos: em muitas comunidades os grupos corais eram identificados como serpentários maledicentes e competitivos. Contou-me certa vez um amigo que, à época do Concílio, um frade apontava para a balaustrada do coro em sua igreja e, rindo, brincava: "o diabo mora lá!".

É admirável a maneira como, em outras sociedades, a tradição da música litúrgica é tratada. Países como os EUA e Canadá possuem associações de coros litúrgicos, bem como de organistas. São organizações que visam defender um interesse comum, partilhando problemas e soluções em nome da continuidade e fortalecimento da atividade. Entendem essas pessoas que a colaboração e o humilde reconhecimento de que problemas existem é a melhor forma para isso.

Oxalá um dia consigamos também nós alcançar tal maturidade, na verdade reflexo de um senso mínimo de cidadania.



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